PENSAMENTOS NA COZINHA



COZINHA 
(Rubem Alves)


Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta 
para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar
mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas 
Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem 
o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos 
ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se 
comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.

"Seria tão bom, como já foi...", diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho 
saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas 
de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem 
saudades dessas cozinhas antigas...

Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma 
vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio 
da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança 
sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito 
não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença:
"A vela queima só. Não precisa de auxílio.
A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. 
O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu. Daí seu orgulho de atiçador perfeito..." Fogo de lareira é igual ao fogo do 
fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o 
fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar.

As pessoas da cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte 
que está por detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos 
e os gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão de lenha tem de ser também um atiçador.

O fogão de lenha nos faz voltar "às residências de outrora, as residências abandonadasmas que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas" (Bachelard). Exupèry, no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus 
e os fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso e pessoas se aqueciam ao seu redor.

Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. 
Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a 
chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos
solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.

Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. 
E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os 
jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher 
chuchús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.

Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os 
mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é 
arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam 
planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos 
nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de 
jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num 
enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, 
enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da 
convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso 
costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam, delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.

As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de 
casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de 
modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora 
transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque
é como já foi.

Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida 
é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e 
vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai 
adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando 
a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com 
gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe 
assado no forno.

Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês 
para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa
começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando 
cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não 
está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada. Passa 
rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. 
A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final,
lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. 
A gente era feliz.

Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de 
inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa 
de abóbora com maracujá, sopa de beringela, sopa da mandioquinha com manga, 
sopa de coentro... Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses 
pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando 
no estômago, confirma...A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como 
a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para chocolate)... (Correio Popular, Caderno C, 19/03/2000.)


SOPAS 
(Rubem Alves)

Se Deus me dissesse para escolher a comida que eu iria comer no céu, 
por toda a eternidade, eu não teria um segundo de hesitação: escolheria sopa.
Camarão, picanha maturada, salmão à Dali, os pratos mais refinados: tudo me 
seria insuportável após umas poucas repetições. Mas não é assim com as sopas. 
Posso tomar sopa por toda a eternidade, sem me cansar.

Minha relação com as sopas é mais que gastronômica: é uma relação de ternura. 

Elas me reconduzem à cozinha de minha casa de menino, ao fogão de lenha, às 
tardes de inverno. A janta (janta, mesmo; jantar é coisa de rico) era servida às 
5 da tarde. Ah! Uma sopa quente que se toma numa tarde fria é uma lareira que 
se acende no estômago. O calor, aos poucos, se espalha pelo corpo. Com umas 
gotinhas de pimenta, então, ele se transforma em suor, e se a gente não usa o 
guardanapo a tempo, as gotas de suor na testa acabam por cair no prato da sopa...

Para mim a sopa é um sacramento de intimidade: um objeto físico, presente, no 

qual vive uma felicidade que se teve, ausente. A sopa quente me transporta para 
outros lugares, outros tempos. Faço e gosto de sopas frias. Sopa fria de maçã, 
por exemplo, tem um sabor exótico. Agrada-me ao paladar. Mas falta a essas sopas
sofisticadas o elemento sacramental: elas não me levam a lugar algum. Falta-lhes 
o calor para me reconduzir ao espaço de intimidade.

Sopa é comida de pobre. Sopa fina, creme de aspargos, creme de palmito, sopa 

gelada de maçã, é nobreza posterior. As sopas fundamentais se fazem com sobras. 
Sobra, é só pobre quem guarda. Sopa é comida de guerra, de fome, quando qualquer
raspa de comida é bem precioso, que não pode ser perdido. Rico não guarda sobra. 
Não precisa. É humilhante. Sobra de rico vai para o lixo. Sobra de pobre vai para o 
caldeirão de sopa. As sopas fundamentais se fazem com sobras, destinadas ao lixo. 
A sopa é uma poção mágica por meio da qual o que estava perdido é salvo da perdição
e reconduzido à circulação da vida e do prazer.

A imaginação de Bachelard diz que a matéria também imagina. A água imagina 

arcos-íris. As sementes imaginam flores e árvores. O mármore imagina ‘Beijos’ (Rodin)e Pietás (Miguel Ângelo). O rios imaginam nuvens (Heládio Brito). As comidas tambémimaginam. O churrasco imagina espetos, facas, garfos: objetos fálicos, masculinos, infernais. O churrasco precisa de perfurações, cortes, dilacerações. As mandíbulas lutam com a carne. A carne resiste.

Já a sopa é mansa. Não é para ser comida. A colher é um côncavo, um vazio, o 

feminino.Nada é perfurado. O gesto é o de ‘colher’: a colher colhe, sem violência. 
Sempre tive implicância com uma etiqueta snob, para a tomação de sopa: que o 
delicado é tomar a sopa com o lado da colher, e não com o bico. Ora, ora - eu 
argumentava - por analogia a gente deveria comer comida sólida com o lado do 
garfo - o que não é possível. De fato. Não é possível. É que o garfo pertence à 
ordem dos talheres pontiagudos, perfurantes: entram pela frente. A colher pertence 
à ordem dos talheres discretos e modestos: entram pelo lado, mansamente...

Salvador Dali, quando menino, sonhava em ser cozinheiro. Preferiu a pintura e 

produziu suas maravilhosas telas surrealistas. O realismo, em pintura, se constrói 
sobre o pressuposto de que as coisas são aquilo que parecem ser, nem mais e 
nem menos. Os olhos, diante de uma tela realista, jamais experimentam a surpresa 
do impossível ou do impensado. O realismo confirma aquilo que os olhos comumente 
vêem. O surrealismo, ao contrário, acha que aquilo que os olhos comumente vêem 
é muito pouco: se olharmos com atenção perceberemos que as coisas são, ao mesmo 
tempo, o que são e também outras: elefantes se refletem nas águas de um lago 
como cisnes, cenários compõem o corpo erótico de uma mulher, o corpo de Cristo 
é transparente e através dele se vêem mares, montanhas e barcos. O realismo 
confirma o criado. O surrealismo recria o criado.

As sopas são a versão culinária do surrealismo. Tivesse realizado sua vocação 

primeira, Salvador Dali seria um especialista em sopas. Pois as sopas se fazem 
negando as coisas, na sua realidade natural bruta e transformando-as por meios 
das relações insólitas que o caldo torna possíveis. O caldo da sopa é o meio mágico 
que junta no caldeirão aquilo que, na natureza, nasceu separado. Creio ser impossível 
catalogar as combinações possíveis: fubá, trigo, batata, alho, cebola, nabo, cenoura, 
tomate, ervilha, ovo, abóbora, mandioca, cará, inhame, carne, peixe, galinha, mariscos, repolho, couve, beterraba, aspargo, palmito, feijão, arroz, queijo, azeitona, pão, maçã, abacate, temperos, pimentas, orégano, tandore - uma canja verdadeira não é canja se lhe faltarem algumas folhinhas de hortelã. E é preciso não nos esquecermos que sopa é a única comida que pode ser feita com pedra, como nos é relatado numa das estórias clássicas que se conta para crianças e adultos.

Gosto das sopas, ainda, por serem elas entidades do mundo dos magos, bruxas e 

feiticeiros. No mundo mágico não se usa churrasco. Magos, bruxas e feiticeiros fazem 
suas poções em enormes caldeirões de sopa, como é o caso de Panoramix, druida do 
Asterix e do Obelix, que prepara sua beberragem de força imbatível num caldeirão 
de sopa fervente.

Prefiro as sopas rústicas - e fazê-las me dá um grande prazer. A sopa de fubá em 

suas múltiplas versões, o caldo verde, a canja com hortelã, a multicolorida sopa de 
legumes: sopas são sempre uma alegria. As sopas rústicas dão permissão para se 
jogar nelas o pão picado. Haverá coisa mais feliz que isso? Reuno-me com alguns 
amigos, às 3as. feiras, para ler poesia, ao redor de um prato de sopa.

Uma última informação: sopas são remédios maravilhosos contra depressão. 

Quando a sopa quente, cheirosa, colorida e apimentada, bate no estômago, a tristeza 
se vai e a alegria volta. Não há melancolia que resista à magia de um prato de sopa... 
(Concerto para corpo e alma, p. 69.)



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